terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tateando ao redor do "Sótão"

A iniciativa do ator e diretor de teatro Samuel Ivan Kühn de escrever e enviar esse texto aos integrantes do espetáculo de teatro "Sótão" teve a imediata receptividade do grupo e valorização das análises críticas. A próxima turnê já deverá conter fragmentos dessa análise construtiva. O texto está servindo para reflexões, repensares e interferências...




































Crítica de Samuel Kühn, em novembro de 2010
"Partindo do princípio de que todo espectador que assiste a um espetáculo e comenta-o faz uma análise (ipso facto), proponho-me a fazer um relato para além das falas mais soltas que se perdem e, assim, compor um material carinhoso e, desejo, reflexivo ao grupo. O objetivo não é uma publicação, mas um possível documento criticizado para Ilaine, Muriel, Cabelo, Franzoi e demais componentes do trabalho SÓTÃO. Peço a ressalva natural que o verbo necessita diante do inefável, da arte. E disso, recordo Pavis que diz “Analisar, de fato, é decompor, cortar, fatiar o continuum da representação em camadas finas ou em unidades infinitesimais, o que evoca mais o trabalho de um açougueiro ou um ‘despedaçamento’ do que uma visão global da encenação e pela encenação.” Que seja mais um relato pretensioso que uma proposta analítica.
Sabendo que Ilaine colhia histórias pela região de Joinville, esperei por vê-las em cena. Porém, não sabia que tipo de histórias poderia vir, sabia que seria de uma ordem popular e que, provavelmente, tocassem algumas questões de fé, de metafísica, de risível e de uma boa dose da mais deliciosa mentira. Assim foi.
Antes de entrar no espaço, o terceiro sino de maneira inusitada levou-me à primeira suspensão da realidade. Então, deparei-me com Muriel: olhar profundo, carregado de uma vida, vida cansada, e uma bela composição visual, traços de luzes definidos em primeiro e segundo planos. Até me sentar tive receio de bater em algum vaso, derrubar parte do cenário, e pensei: pouca luz, sótão, que não venha algum morcego. Mas esse último não viria pela clara limpeza de tratamento das luzes do espetáculo ou por motivos de IBAMA. Embora escuro e claro estivessem presentes, as linhas eram bem definidas, afinadas convencionalmente, colocando-nos (público) na atmosfera do edifício teatral. Nesse momento: o material gráfico, o Sótão, as futuras rudimentares histórias sofreram uma intervenção do espaço ao ponto de deslocá-los.
Algumas são as opções feitas à observação: o ator, ser principal da arte teatral dramática e que todo o restante deve compor à sua representação, o espaço, tema em debate reticente e interminável e a linguagem.
Com pouca luz, Muriel inicia com narrativas densas em que a morte está presente e coloca-nos em apreensão por saber que o que está sendo dito partiu de histórias reais. Soluços secos. A voz do ator possui características distintas: é arranhada, prestando rusticidade e nebulosidade favoráveis à história; é difícil de compreender em volume e articulação.
Gostaria de chamar atenção à sublime plasticidade com que as palavras dos seios ressequidos (secos) formaram com as bolsas únicas e toda a primeira parte ou cena do espetáculo. Ali, sem dúvida, havia uma ferocidade de vida seca(ndo). No entanto, foi a primeira vez que a semi-arena me incomodou. Havia, claramente, um distanciamento, um quadro a ser fruído ou contemplado a certa distância, mas que a disposição do público a fez se perder.
Até então, o espetáculo estava sendo tomado por uma postura épica, a qual foi quebrada em seguida quando os atores solicitaram a participação do público para acenderem velas e carregarem até o centro da cena. Em primeira instância, era uma fogueira às avessas, o fogo estava em nós, iluminando-nos. Após, invertemos e construímos uma fogueira mais tradicional – fogo ao centro, pessoas ao redor. Bem, será que agora o público será chamado para contar as suas histórias? Esse ritual será democratizado? Vale a pena ser? Aí, dois focos de luz respondem. Não. Serão os atores. Aqui cabe uma reflexão: a encenação passou do épico para o teatro celebração e, tão logo, a uma proposta dramática. Particularmente gosto das três – gosto é sempre redutor e partidário – mas a costura, penso, precisaria de uma revisão, assim fragiliza o espetáculo. Os vasos desapareceram, as bolsas-seios perderam o sentido, o público foi chamado à cena e descartado ao fim de algumas narrativas.
A partir desse momento, os atores ganham um brilho maior. Há o abandono das construções visuais mais trabalhadas e ressaltam as virtuoses de dois contadores de histórias com vasta experiência. Ilaine não apenas conta ou fala, ela consegue distintamente carregar com seu vigoroso corpo e voz todos os espectadores, levando-nos em um barco, por exemplo. Muriel, não tão complexo quanto Ilaine, constrói por empatia, humor e espontaneidade uma relação sincera e divertida com o público, ressalto a boa desenvoltura. A leveza e a fluidez ganham força e dão outra substância ao espetáculo, mesmo com dois elipsoidais rasgando burocraticamente o celebrativo.
Esse caráter de contação de histórias e empatia dos atores firma a cena seguinte. É agradável ver a disputa bem humorada sobre as cobras e, parece-me, que o espaço é o próprio corpo do ator – isso muito me agrada (particularidades). O espetáculo havia abandonado a poética inicial, evidentemente.
Na cena posterior, imbuídos de efeitos celebrativos potentes, porém enfraquecidos pela fragmentação das cenas, há outra bela composição visual: o entrelaçamento da nudez com seios fartos e a força poética composta pelos panos de Franzoi reportam à linguagem inicial do espetáculo.
Vejo três formas interessantes, mas que necessitariam de uma costura mais delicada, pois são caminhos diferentes que custam dialogar. O espetáculo é sensível, inegavelmente. Os atores são vividos e Muriel ainda pode investir mais nessa sua capacidade para lidar com as primeiras histórias. Ilaine tem o peso da solidez do espetáculo com o valor de uma pena. As luzes, por vezes, muitas vezes, são belas composições, por outras desconfiguram outras importâncias – opções de direção. A trilha sonora poderia ser mais aproveitada, inclusive iluminando o executor. Este está presente e negado em grande parte do evento. Por isso, vale outra reflexão: se Cabelo, que esbanja timidez, pudesse acreditar no seu valor cênico, com luz e confiança, poderiam chegar a outros resultados e inferências. As músicas são lindas, mas o diálogo entre os atores e o músico – não a música ou a trilha, digo o músico – é rasteiro e hierarquizado.
Espero que esse exercício de relato possa, de alguma forma, contribuir com a vida do SÓTÃO. Esse é o objetivo maior. Foi um prazer escrever para o grupo. Vida longa ao trabalho."

Samuel Ivan Kühn é professor do Colégio Bom Jesus, ator e diretor teatral - Joinville, SC.

Leia mais sobre o "Sótão" neste blog:
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/sotao-retorna-em-marco-no-aniversario.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/retire-o-seu-ingresso-com-uma-hora-de.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/selecao-de-fotos-do-sotao-para-imprensa.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/bruxas-e-lobisomens-do-sotao.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/folder-do-sotao.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/11/em-cartaz-sotao.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/10/sotao-estreia-no-sesc-joinville.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/05/o-encontro-do-santo-com-o-lobisomem.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/05/lobisomem-do-sotao.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2010/04/carlos-franzoi-no-sotao.html
http://jornalistaandrade.blogspot.com/2009/10/sotao-premiado.html

Mais informações: 47 3433.9121 – Ipê Produções, produtor@ipeproducoes.com.br

Ficha técnica:

Apresentação: Grupo Roca de Teatro
Direção: Ilaine Melo e Franzoi
Dramaturgia: Ilaine Melo
Atuação: Ilaine Melo e Muriel Szym
Cenografia e figurino: Franzoi
Cenotécnica: Altamir Andrade
Iluminação e som: Maíra Correia Lemos
Apoio: Fernando Felippi
Direção musical e trilha sonora original: Fábio Cabelo
Material gráfico: Iago Sartini
Foto da arte gráfica: Cassios Nogueira
Fotos do espetáculo: Pena Filho
Produção: Ipê Produções
Apoio: SESC/SC Joinville, Dionisos Teatro e MAJ - Museu de Arte de Joinville
Patrocínio: JOV - Jornal O Vizinho
Realização: Edital Elizabete Anderle de Incentivo à Cultura da Fundação Catarinense de Cultura do Governo do Estado de SC

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